haviam vinte vezes vinte mil homens e duzentas vezes mais

haviam anjos e demônios e dragões e carniçais

a guerra entre os reinos e os planos já durava séculos sem fim

e duraria muitos mais

aí veio a donzela

(e uma donzela em um cenário desses é uma coisa indispensável, embora muitas vezes trágica)

caminhava nua essa donzela

e os dragões choravam por ela

e vinte vezes vinte mil homens lutaram por ela

e anjos e demônios encantaram-se por ela

o último prócere de pé reclamou para si a donzela

ela muito respeitosamente declinou tal galanteio

não que o galanteador fosse pobre ou chato ou feio

mas a donzela amava outra donzela

de outro reino

de outra guerra

estava ali de passagem, no mais

apanhou no chão uma flor e seguiu

que assim seguem o amor e as donzelas

muitas vezes trágicos

Nem bem abriu os olhos e lembrou um quase nada de toda a merda merda merda em que deu a noite anterior. Não era pra ninguém sair ferido o filho da puta atirou e ela drogada demais pra fazer alguma coisa puta que me pariu nem sei como cheguei em casa como caí na cama nada.

Tem vômito e sangue no colchão.

Ela procura a carteira o celular não fode sumiu tudo será que o desgraçado teve a cara dura de me roubar nem acredito que dei praquele cusão.

A porta da frente está aberta.

Um cheiro de mofo merda droga sei lá sai de algum lugar sai daí o instinto dizendo pra voltar pra cama e ela querendo sair mas pra onde eu vou que minha cabeça ainda tá fudida fudida de merda esse cheiro tá me tirando o juízo.

Talvez se eu tomar um banho.

Mas meu abençoado e maldito Jesus Cristo tem uma mulher morta na banheira o cheiro vem dali é merda e sangue e água suja suja imunda maldita vagabunda quem é essa santa devassa defunta fudida se pergunta.

Sou eu…?

Não tem letra nem escrita o papel em silêncio
Grita
O nome no muro a porta
Fechada à força
Futuro estrada retorno 
Morta
A experiência dos dias comuns
O que não se traduz
Imagética
Poética
Aquilo que sabe o sábio
Aquilo que o trouxa deduz
Nem todo ouro é de tolo
Nem toda clareza é luz...

RAP(ente)

Eu sou o cara que dorme

À noite embaixo da ponte

Eu sou o fogo do sol

Secando a água da fonte

Sou a criança que chora

Sou o banguela que ri

O filho que vai embora

E o que sonha em ir

Sou grana de agiota

Sou gatilho de milico

Que esmaga à sola da bota

O pobre e defende o rico

Sou mais valente que um urso

Sou mais medroso que um rato

Não sei se vou ou se fico

Nem se sou gato ou sapato

Não mando o papo mais reto

Não sou o rei do pedaço

Mas penso em tudo que falo

E tudo que eu falo eu faço

Nesses dias em que amor

Sai parcelado no visa

Te alugo a indiferença

O ódio te vendo à vista

Sou Buda olhando você

Com a bunda no busão

O diabo dando rolê

Levando Deus pela mão

O pão que eu mesmo amassei

Murcho no centro da mesa

Sou o pedreiro o DJ

Malandro e realeza

Sou o que sei e não sei

Sou o dragão da princesa

E depois de tanto verso

Até o inverso já versa

Vou guardar meu universo

E encerrar a conversa…

Fragmento XXIX

Eu nem sabia se estava realmente acordado, a maldita cabeça latejando que ressoava até o saco numa ressaca dos infernos.

Dizer ao certo se havia morrido ou matado alguém era simplesmente impossível naquela confusão de vermes que me roíam o hipotálamo.

Nu.

Jamais em toda minha vida dormi nu, mas foi assim que acordei. A não ser que a crosta de vômito seco que me cobria o peito contasse como um tipo bizarro de veste cerimonial. Habemos Baba.

Fiz merda. O pior é que não lembro.

Ou o melhor é que não lembro.

Onde estão as merdinhas dos cigaros desgraçados do caralho?

(Eu fumo?)

A casa parecia de pernas pro ar o que na verdade só queria dizer que tudo estava como sempre.

Foda-se.

Vou tomar um banho sabendo que vou pensar em bater uma punheta sabendo que o pau não vai subir sabendo que no final vou desistir mesmo. Do banho.

Quando eu acordar vou estar bem, espero.

Espero acordar…

Microconto de terror terrivelmente assustador…

A noite começava a cair e ele andava pelas ruas despreocupadamente.

Tudo parecia normal.

As pessoas nas calçadas conversavam como sempre.

Jovens nas praças, bares lotados.

Nada sequer lhe chamou a atenção.

Ao aproximar-se de casa, porém, foi sendo tomado por um mal estar que não conseguia definir. Um aperto no peito, a cabeça pesada, como se um estridente alerta de perigo soasse em sua mente.

Já diante do portão, vacilou.

As mãos, trêmulas, deixaram cair as chaves.

Levou 20 minutos para enfim conseguir entrar.

A casa estava escura e silenciosa.

Engolindo seco, tateou as paredes até encontrar um interruptor.

Luzes acesas, deparou-se com a pior cena possível, algo tão cruel que sequer imaginara tal possibilidade, nefasta e dolorosamente real, por mais que fosse difícil aceitar.

Sentou-se na primeira cadeira que encontrou.

Atônito, não sabia como reagir àquilo.

Deixou-se quedar, à espera do fatídico desfecho.

Nas mãos, um bilhete que dizia:

“Fui à missa. Quando voltar, vamos ter uma conversa séria.”

Assinado: Mamãe…

Fragmento CX

Era um sorriso, apenas, mas vê-lo naquele espelho foi como nascer de novo.

Piscou, lavou o rosto, fechou os olhos. Tornou a abri-los lentamente.

Mas o sorriso continuava lá.

Gargalhou e chorou a um só tempo, naquele banheiro minúsculo do laboratório.

Como explicar, como fazer alguém acreditar que um sorriso tinha sido roubado, e que foi necessária uma legião de anjos para recuperá-lo?

Ademais, ainda havia uma última batalha a ser travada, e ainda não tinha todas as armas necessárias.

Era preciso ir aos poucos.

A pedra criara asas, mas voar são outros quinhentos…

Definitivamente uma noite difícil…

A fumaça do Cohiba Robusto permeava o ar, entre as tragadas intercaladas por goles de Maker’s Mark puro, como ele gostava.

Era seu bar de sempre. Seu território. E ele estava à caça.

Mas previa uma noite difícil. Uns poucos gatos pingados, universitários se exibindo com a grana do papai para meninas de cabeça oca à procura de filhos de papais ricos para se exibir. Alguns fariseus tomando seus drinks coloridos. Gente que não reconheceria uma bebida de qualidade nem se pingasse dos seios da Virgem Maria.

Definitivamente uma noite difícil…

Poucas mulheres.

Nenhuma aparentando ser minimamente interessante.

Já considerava a possibilidade de ir embora e (sacrilégio necessário) procurar outro bar, quando uma voz feminina, num tom carregado de um sotaque que não soube identificar, falou meio rouca de ironia:

– Se eu quisesse beber água não pediria Jack Daniel’s. Onde o treinaram para colocar seis pedras de gelo em uma dose de uísque? Numa loja de conveniência de posto de gasolina?

Sentiu um arrepio e olhou de lado. Ali estava ela. Ao contrário de todas as histórias cinematográficas de encontros românticos em bares noir, ela não era uma loira alta e longilínea. Não tinha mais que 1,65m.Tinha cabelos pretos cortados curtos, um corpo cheio de voluptuosas curvas, um sinal charmoso abaixo do lábio, no lado esquerdo de um rosto que lembrava uma menina ao mesmo tempo que insinuava uma mulher. E os olhos, aqueles olhos…

Imediatamente pensou em olhos de cigana oblíqua e dissimulada, detestando-se pela cretinice do clichê. Eram olhos que prometiam te dar o mundo, ou te jogar pra fora dele num momento de loucura. Olhos de determinada inteligência, cortantes, cheios de tesão pela vida, que o deixaram excitado ao cruzar com os seus.

Ela percebeu que ele a olhava e imediatamente sorriu, deixando entrever inúmeras possibilidades…

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Horas depois, estavam na cama dele, após um sexo demorado, dolorido e furioso.

Ele, como de hábito, procurava a maneira mais gentil de fazê-la entender que seria mais vantajoso para ambos que cada um dormisse em sua própria casa, quando ela falou, com uma entonação serena e firme:

  • Não precisa se preocupar, eu tenho dinheiro para o táxi.

Ele ainda tentou balbuciar umas desculpas, mas ela se levantou e ele se viu sem palavras contemplando aquela pele, aqueles seios, aquela bunda, e aqueles olhos.

Ela se dirigiu à porta e saiu, sem um adeus sequer.

Ele acendeu um cigarro, serviu uma dose de uisque e falou pra si mesmo:

– Que desgraçada mais esnobe! Preciso encontrá-la outra vez…

Não dá pra dizer tudo

Em uma frase

Não dá dá pra viver mudo

Mude de fase

Não existe amor sem dor sem rima sem o triste mal do mal

De mal dizer

De escrever o que aqui me trouxe

Descrever o teu doce doce de você

Foice o tempo denso de te ver

Não adianta o grito o medo o sonho

Do homem que nasce velho

Ou do que morre criança

Não adianta a espera

Não vale a esperança

Sempre se desespera

Quem quase nunca alcança

Não é preciso morrer pra ver o inferno

Fechando os olhos se vê

As flores mortas nos vasos

O vazio dos passos

De quem se excita com a vaidade crua

Nua de qualquer vontade

Não é preciso morrer pra ver Deus

Nem é preciso viver pra sofrer

Por todos os pecados

Que não são todos meus…